A crise na Venezuela piora, e o chavismo usa a violência para ficar no poder
Os venezuelanos passam fome e padecem com a inflação, enquanto Nicolás Maduro discursa e reprime manifestantes
RODRIGO TURRER
23/05/2016 - 17h25 - Atualizado 23/05/2016 17h36
As cenas de penúria dos venezuelanos se tornaram corriqueiras nos últimos anos, mas atingiram o ápice na semana passada. A crise de abastecimento deixou as prateleiras dos supermercados totalmente vazias. Nesta segunda-feira (23), até a Coca-Cola anunciou que interrompeu a produção de refrigerantes no país por causa da falta de açúcar no mercado. Nos hospitais, recém-nascidos e doentes crônicos morreram nos corredores por causa da falta de remédios e de equipamentos. Uma epidemia de fome se alastrou no país. Nos últimos dois anos, a crise na Venezuela só piorou. O país sofreu uma implosão rara em países sem guerra: a taxa de mortalidade quadruplicou, a inflação de 180% em 2015 colocou mais de 70% da população na pobreza, uma onda de criminalidade incontrolável obriga as pessoas a ficar trancadas em suas casas.
Enquanto os venezuelanos agonizam, o presidente do país, Nicolás Maduro, faz a única coisa que sabe: discursa. Enfurnado na bolha imaginária que a cleptocracia chavista criou para tentar se manter no poder, Maduro aparece em rede nacional e sobe no palanque ao menos duas vezes por dia. As políticas do chavismo para contornar a crise histórica seriam cômicas, não fossem trágicas. No começo do mês, Maduro criou a semana de trabalho de dois dias para o funcionalismo público, uma medida para controlar o gasto de energia. Na semana passada, decretou “estado de exceção” para proteger “o povo do golpe em curso promovido por forças externas”. Para recuperar a “capacidade produtiva do país”, determinou a ocupação pelos trabalhadores de quaisquer parques industriais parados.
As soluções mágicas de Maduro não terminam por aí. Na última quarta-feira, dia 18, em seu programa de rádio e TV, En contacto com Maduro, o presidente da Venezuela deu valiosas informações sobre como a população poderia enfrentar a crise de desabastecimento crônica: fazendo em casa farinha de feijão para substituir a farinha P.A.N., uma farinha à base de milho que sumiu dos mercados. A farinha P.A.N. é o insumo básico para produzir um pão típico da Venezuela, a arepa. Só há um problema na ideia de Maduro: o feijão é um dos itens básicos que sumiram dos supermercados.
A lista de bravatas de Maduro é infindável. No País Maravilha criado pelo presidente e pelos chavistas, são as forças internacionais que conspiram contra seu governo e instigam a população. A culpa pela hiperinflação que poderá chegar a 720% neste ano não é da distribuição de benesses à custa de impressão ilimitada de dinheiro, mas dos empresários gananciosos. O sumiço dos produtos básicos nada tem a ver com o controle de preços, que se aplica de alimentos e medicamentos vitais a desodorantes, fraldas e papel higiênico. A culpa da escassez é da “guerra econômica” patrocinada pelos Estados Unidos. O chavismo, há 17 anos no poder, nada tem a ver com a pior crise da história do país. “A derrocada da Revolução Bolivariana está ligada ao gigantesco saque do Erário por funcionários, oficiais militares e seus cúmplices bolivarianos”, escreveu o venezuelano Moises Naim, um dos principais analistas políticos internacionais. “Na Venezuela, a cleptocracia disfarçada de ideologia socialista e amor pelos pobres destruiu o Estado.”
A situação deverá piorar nas próximas semanas. A crise da saúde é a pior na história da Venezuela. Centenas morreram nos últimos dias por falta de medicamentos. Dezenas de milhares de pacientes HIV positivos só encontram os antirretrovirais com muito custo. Os pacientes com câncer não têm acesso à quimioterapia. Mesmo a malária – que tinha praticamente desaparecido da Venezuela havia uma geração e pode ser tratada com remédios baratos – retornou com resultados mortais. O aumento da temperatura provocado pelo fenômeno El Niño causou uma grave seca. As empresas públicas de água responderam à redução do nível das reservas com medidas de racionamento. Alguns bairros pobres passam semanas sem água corrente. A criação de reservatórios caseiros e água em baldes fez disparar o número de casos de zika, dengue, chikungunya e malária.
Os apagões são diários: Caracas passa quatro a cinco horas por dia no escuro. Mesmo com as centenas de milhões de dólares supostamente investidos desde 2009 para construir novas usinas de energia movidas a óleo diesel e gás natural. Fora a crise crônica de violência. Bandidos sequestram pessoas diariamente nas grandes cidades, mesmo durante o dia. Enquanto a Guarda Nacional reprime manifestantes, os bandidos atuam livremente. Um estudo feito no ano passado colocou 21 cidades venezuelanas entre as 50 mais violentas do mundo. A capital, Caracas, é a mais violenta, com uma taxa de 119 homicídios para cada 100 mil habitantes.
O nível de alienação de Maduro diante do caos social venezuelano só perde no ranking mundial da sandice para a Coreia do Norte. A diferença é que Kim Jong-un, o líder norte-coreano, é tratado por seu povo como um Deus, alguém intocável, onisciente e onipresente. Maduro não desfruta essa condição. Enquanto Hugo Chávez era vivo, seria impensável que moradores das regiões mais pobres das grandes cidades, os barrios, as favelas venezuelanas, protestassem contra seu governo. Na semana passada, a depauperação da economia venezuelana levou milhares de moradores dos barrios às ruas de Caracas, Guarenas, Maracaibo, Barcelona, as maiores cidades do país. Até há pouco bastiões intransponíveis do chavismo, os barrios foram tomados por pessoas com cartazes dizendo “No hay comida” (Não há comida) e “Tenemos hambre” (Temos fome). Em vários Estados, houve saques e confrontos.
A Venezuela se inflama, e a resposta do chavismo é típica das ditaduras confrontadas com sua incapacidade: violência. Uma marcha realizada pela oposição em Caracas na quinta-feira, dia 19, foi mais uma prova disso. A oposição mobilizara seus apoiadores para se concentrar na Praça da Venezuela, no centro, e de lá partir para a sede do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). A repressão da polícia e da Guarda Nacional Bolivariana foi brutal. Os policiais bloquearam os acessos à praça, onde se permitiu apenas a concentração de algumas centenas de chavistas. Em determinados momentos, dezenas de partidários motorizados do governo rodeavam a praça em bloco, em claro sinal de intimidação. A cerca de 1 quilômetro de distância, em um trecho da Avenida Libertador, os opositores foram barrados pela forte presença policial. Houve confrontos. Algumas pessoas ficaram feridas e dezenas foram presas.
A tensão social crescente indica a iminência de derramamento de sangue. Ao contrário de outras ocasiões, quando os líderes da oposição encerraram o protesto ao menor sinal de confronto, na quinta-feira trataram de seguir adiante, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e disparos de tiros para o alto. “A Venezuela é uma bomba prestes a explodir, e agora todos os ingredientes da bomba estão juntos”, afirma Henrique Capriles, ex-candidato presidencial, principal líder da oposição e incentivador da campanha por um referendo para a revogação do mandato de Maduro. O detonador da bomba está nas mãos de Maduro – e ele não parece nem um pouco interessado em não apertar o botão.
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