Entenda a crise da dívida da Argentina
Fundos credores pediram na Justiça pagamento integral de dívida.
Veja possíveis cenários e consequências do impasse.
Cartaz do governo nas ruas de Buenos Aires sobre a disputa em relação a dívida argentina. (Foto: Juan Mabromata/AFP)
A Argentina ultrapassou nesta quarta-feira (30) o prazo para encontrar
uma saída e evitar um novo calote, quase 13 anos depois da moratória de
2001. O país não chegou a um acordo com os fundos especulativos nem
conseguiu a suspensão da decisão da Justiça dos Estados Unidos que força
o país a negociar com investidores que não aceitaram participar das
restruturações da dívida e exigem o pagamento integral.
Com isso, o país deu oficialmente o calote, como apontou o mediador
desigando pela Justiça, Daniel Pollack, em nota divulgada nesta quarta.
No entanto, a moratória dado pela Argentina é considerada seletiva e
técnica porque não atinge todos os credores que já renegociaram a dívida
e nem está sendo dada por falta de dinheiro. O calote é seletivo porque
atinge somente os US$ 539 milhões em dívidas que seriam pagas por meio
de depósito no Bank of New York Mellon (Bony). É técnico porque o
dinheiro está no banco, mas não pode ser repassado por uma decisão
judicial.
No último dia do prazo, o governo argentino e os fundos ficaram mais de
6 horas em reunião com o mediador em Nova York, tentando pôr um fim ao
impasse, mas não conseguiam chegar a um acerto. Segundo o ministro argentino da Economia, Axel Kicillof, "os fundos querem mais e agora".
O governo da presidente Cristina Kirchner levou à última reunião as mesmas propostas oferecidas ao longo da negociação, afirmando que não poderia dar aos chamados "fundos abutres" possibilidades diferentes das dos demais credores por conta do contrato. As propostas foram a suspensão da decisão da justiça ou um pagamento nos mesmos termos aceitos pelos credores que já renegociaram a dívida.
O governo da presidente Cristina Kirchner levou à última reunião as mesmas propostas oferecidas ao longo da negociação, afirmando que não poderia dar aos chamados "fundos abutres" possibilidades diferentes das dos demais credores por conta do contrato. As propostas foram a suspensão da decisão da justiça ou um pagamento nos mesmos termos aceitos pelos credores que já renegociaram a dívida.
Apoio internacional
Na véspera, a presidente argentina recebeu o apoio dos países do Mercosul, reunidos em Caracas, que manifestaram "sua solidariedade militante" na disputa com os fundos especulativos.
Na véspera, a presidente argentina recebeu o apoio dos países do Mercosul, reunidos em Caracas, que manifestaram "sua solidariedade militante" na disputa com os fundos especulativos.
A presidente Dilma Rousseff defendeu "foros imparciais" para julgamento
de ações sobre a restruturação de dívidas de nações. "O problema que
atinge a Argentina é ameaça não apenas para o país irmão, mas atinge
todo o sistema financeiro internacional. Não podemos deixar que a ação
de poucos especuladores coloque em risco a estabildade e o bem-estar de
países inteiros”, disse.
Ao logo da negociação, Cristina Kirchner reafirmou que seu governo está
disposto a pagar todas as suas dívidas. "Tentam de fora e de dentro (do
país) nos assustar, insinuando que, se não fizermos o que eles dizem
que temos de fazer, virão as dez pragas do Egito (...) A Argentina
afirma mais uma vez sua vontade, suas convicções, suas decisões e suas
ações, que estarão direcionadas ao pagamento de 100% dos credores, mas
de forma justa, equitativa, legal e sustentável", disse.
O governo argentino tem deixado claro que não aceita ser
responsabilizado pelo eventual novo calote, uma vez que depositou o
valor correspondente à parcela que venceu nesta quarta.
Tentam de fora e de dentro (do país) nos assustar, insinuando que, se
não fizermos o que eles dizem que temos de fazer, virão as dez pragas do
Egito"
Cristina Kirchner
O depósito foi feito pela Argentina no banco nova-iorquino que se
encarrega dos pagamentos (Bank New York Mellon), mas a Justiça dos EUA
bloqueou a transação, por ordem do juiz Thomas Griesa, que determinou
que nenhum pagamento da dívida reestruturada pode ser feito a menos que a
Argentina pague também aos fundos abutres.
De onde vem o impasse
O impasse de agora ainda é um desdobramento daquele megacalote do fim de 2001. Depois de dizer que não tinha como pagar ninguém, a Argentina decidiu reestruturar seus débitos: ofereceu pagar, em parcelas de até 30 anos, menos do que os títulos da dívida valiam. A maioria dos prejudicados aceitou as condições, e é uma das parcelas para este grupo que venceu. A Argentina fez o depósito, mas os recursos foram bloqueados pela Justiça americana.
O impasse de agora ainda é um desdobramento daquele megacalote do fim de 2001. Depois de dizer que não tinha como pagar ninguém, a Argentina decidiu reestruturar seus débitos: ofereceu pagar, em parcelas de até 30 anos, menos do que os títulos da dívida valiam. A maioria dos prejudicados aceitou as condições, e é uma das parcelas para este grupo que venceu. A Argentina fez o depósito, mas os recursos foram bloqueados pela Justiça americana.
Para destravá-los, o país teria de cumprir uma decisão judicial que
ordenou o pagamento de US$ 1,33 bilhão mais juros a fundos especulativos
liderados por NML e Aurelius. Eles têm em mãos papéis da dívida de uma
minoria (7,6%) que não quis renegociar as dívidas e foram à Justiça
exigir o pagamento integral.
O calote de agora está mais relacionado a questões jurídicas complexas do que, necessariamente, à falta de dinheiro.
O governo afirma que qualquer novo acordo com credores ameaça todo o
processo de reestruturação da dívida feita lá atrás, porque poderia
provocar uma enxurrada de processos de credores exigindo o mesmo
tratamento (receber todo o valor do título), aumentando o valor da
dívida em mais de US$ 120 bilhões.
Cláusula faz país evitar negociação
Além das dificuldades financeiras, a Argentina tem outra barreira para negociar os débitos abertamente: uma cláusula no contrato de todos os títulos emitidos nas trocas dos anos 2005 e 2010 – ou seja, os que entraram na renegociação da dívida e estão em poder de 92,4% dos credores.
Além das dificuldades financeiras, a Argentina tem outra barreira para negociar os débitos abertamente: uma cláusula no contrato de todos os títulos emitidos nas trocas dos anos 2005 e 2010 – ou seja, os que entraram na renegociação da dívida e estão em poder de 92,4% dos credores.
A cláusula chamada Rufo (Rights Upon Future Offers) trata de direitos
sobre ofertas futuras da renegociação. Ela dá a garantia de poder exigir
as mesmas condições de qualquer outra eventual oferta voluntária futura
aos chamados “holdouts” – aqueles que ficaram de fora da renegociação.
Assim, se a Argentina pagar 100% da dívida a algum credor, outros podem
cobrar o mesmo. Esse item do contrato, no entanto, vence no dia 31 de
dezembro, o que leva a muitos analistas a acreditarem que um acordo ou
iniciativa de negociação não deverão acontecer antes de 2015.
Outra saída seria um acordo judicial forçado, com o juiz estabelecendo
os termos de pagamento e percentuais, o que tiraria um pouco da pressão
sobre o governo argentino. Ele poderia alegar que a oferta não foi
voluntária e, assim, se livrar do disparo da cláusula Rufo.
"A Corte americana é muito rígida. Uma possibilidade de reversão de
decisão é praticamente zero. Só resta à Argentina tentar ganhar prazo. A
curto e médio prazo não há outra alternativa", avaliou o economista do
Insper Otto Nogami.
Expectativas
Especialistas ouvidos pelo G1 na última semana já esperavam que a falta de acordo entre a Argentina e os fundos. Acreditava-se que qualquer iniciativa de acerto só deveria acontecer antes de 2015 se o país pudesse evitar o disparo da cláusula Rufo, ou se tivesse a garantia de que não haveria questionamento por parte dos investidores que aceitaram os termos das reestruturações de 2005 e 2010. Nenhuma das condições foi confirmada oficialmente.
Especialistas ouvidos pelo G1 na última semana já esperavam que a falta de acordo entre a Argentina e os fundos. Acreditava-se que qualquer iniciativa de acerto só deveria acontecer antes de 2015 se o país pudesse evitar o disparo da cláusula Rufo, ou se tivesse a garantia de que não haveria questionamento por parte dos investidores que aceitaram os termos das reestruturações de 2005 e 2010. Nenhuma das condições foi confirmada oficialmente.
Sam Aguirre, diretor da FTI Consulting e especialista em reestruturação
de dívidas corporativas, afirmou que o calote poderia jogar no colo da
Justiça a responsabilidade de determinar um acordo forçado ou de fixar
uma proposta de desconto no valor dos títulos cobrados, o que tiraria um
pouco da pressão sobre o governo argentino, por não se tratar de uma
oferta voluntária, podendo livrar a Argentina do disparo da cláusula
Rufo.
A manutenção do bloqueio da parcela vencida nesta quarta também pode
provocar o questionamento de investidores de outros credores. "A questão
é superdelicada. O juiz emitiu ordem para não pagar ninguém, o que pode
mexer com leis de outros países. Portanto, não podemos descartar a
hipótese de uma suspensão parcial, que libere o pagamento para alguns
credores", disse Aguirre.
Na terça (29), detentores da dívida denominada em euro entraram com um
pedido para que o juiz emita uma suspensão de último minuto de sua
decisão que ameaça levar o país sul-americano ao default.
Para os especialistas, mesmo no cenário de calote, o governo argentino
continuará tentando uma saída jurídica. E também poderá emitir novos
bônus, referentes aos juros da parcela bloqueada, segundo Antonio
Madeira, da LCA. "O próprio Brasil já fez isso na década de 80. Acredito
que a Argentina não teria dificuldade para renegociar o pagamento
destes juros", avalia.
Cristina Kirchner inaugurou na quarta (23) nova fábrica da Yamaha na Argentina (Foto: Divulgação/Casa Rosada)
Impactos econômicos de um novo calote
Segundo os analistas, o novo calote dificilmente provocará impactos semelhantes ao da moratória de 2001. A avaliação é de que não se trata de um problema de falta de dinheiro e que a questão tende a ser resolvida num prazo de até 6 meses, quando expira a cláusula Rufo.
Segundo os analistas, o novo calote dificilmente provocará impactos semelhantes ao da moratória de 2001. A avaliação é de que não se trata de um problema de falta de dinheiro e que a questão tende a ser resolvida num prazo de até 6 meses, quando expira a cláusula Rufo.
A Argentina já é especialista em calote. As principais consequências
já aconteceram. Só irá acentuar os problemas que já existem. Mas o novo
default não será surpresa para ninguém"
Rodrigo Zeidan, Fundação Dom Cabral
É consenso, entretanto, que a combalida economia argentina será ainda
mais enfraquecida, uma vez que a fuga de dólares tende a crescer, a
moeda a se desvalorizar, a inflação a subir e o Produto Interno Bruto
(PIB) a cair.
O país está há anos afastado dos mercados de capital e as necessidades
de financiamento do governo são cobertas, em grande parte, por uma
política comercial que prioriza o superávit (quando as exportações são
maiores que as importações). Neste sentido, um novo calote deve derrubar
ainda mais a nota de risco da dívida da Argentina, podendo atrasar
ainda mais os planos do país de recompor sua credibilidade para voltar a
emitir títulos para captação de recursos no exterior.
A agência de risco Standard and Poor's rebaixou nesta quarta-feira (30) a nota da Argentina para "default seletivo", considerando ainda antes de a falta de acordo ser anunciada oficialmente que o calote havia sido dado.
Otto Nogami, do Insper, lembrou que o país continua sofrendo os efeitos
do último calote, como a redução drástica das reservas internacionais.
"Diante da dificuldade de remeter o lucro das suas operações, muitas
empresas já saíram da argentina. A falta de credibilidade é tanta que
boa parte das empresas ainda pagam os salários em espécie, pois o
argentino tem medo de colocar o dinheiro no banco", disse.
Com o novo default, o controle de câmbio tende a ser ainda maior e é de
se esperar que parceiros comerciais como o Brasil passem a ter ainda
mais dificuldades nas exportações. "Diante da necessidade de gerar
superávit de divisas [mais entrada de moeda norte-americana] para pagar
os seus credores, a Argentina terá que depender cada vez menos de
importação", avaliou Antonio Madeira. Por outro lado, segundo ele, os
próprios exportadores passarão a ficar mais receosos e passarão a exigir
dos argentinos pagamento antecipado ou algum tipo de fiança bancária.
Exportações para a Argentina em queda
O Brasil permanece como o principal parceiro comercial da Argentina, representando 20,4% das exportações da Argentina. E em seguida estão Chile (6,3%), China (6,2%) e EUA (5,1%). Mas, somente neste ano, as vendas do Brasil para a Argentina caíram mais de 20% ou US$ 1,9 bilhão. De janeiro a junho, o país vendeu para o vizinho US$ 7,41 bilhões em mercadorias ante US$ 9,32 bilhões no 1º semestre de 2013. O embarque de carros – principal item de exportação – desabou 31,5% neste ano.
O Brasil permanece como o principal parceiro comercial da Argentina, representando 20,4% das exportações da Argentina. E em seguida estão Chile (6,3%), China (6,2%) e EUA (5,1%). Mas, somente neste ano, as vendas do Brasil para a Argentina caíram mais de 20% ou US$ 1,9 bilhão. De janeiro a junho, o país vendeu para o vizinho US$ 7,41 bilhões em mercadorias ante US$ 9,32 bilhões no 1º semestre de 2013. O embarque de carros – principal item de exportação – desabou 31,5% neste ano.
Do lado das importações, a queda foi na mesma proporção. As encomendas
feitas para a Argentina somaram US$ 7,03 bilhões até junho, ante um
valor de US$ 8,79 bilhões no 1º semestre do ano passado. O Brasil fechou
os seis primeiros meses deste ano com um déficit comercial (importações
maiores que exportações) de US$ 2,49 bilhões.
Neste ano, exportações do Brasil para a Argentina caíram mais de 20% ou US$ 1,9 bilhão
Para os analistas, o agravamento da crise argentina pode acabar
enfraquecendo e desestabilizando o pouco que resta do Mercosul, além de
poder afetar a definição de preços dos títulos das dívidas dos países da
região.
No entanto, a avaliação geral é que o contágio internacional da crise do país vizinho seria praticamente nulo.
A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine
Lagarde, disse na terça-feira (29) que um possível calote da Argentina não deve gerar "consequências significativas importantes no resto do mundo".
"O resultado das decisões legais que estão sendo tomadas em Nova York
neste momento tem significância muito mais ampla", disse Lagarde. "Os
princípios de reestruturação e a eficácia das cláusulas de ação coletiva
terão de ser revisadas", acrescentou.
Para Zeidan, da Fundação Dom Cabral, o efeito mais nocivo do calote
será adiar ainda mais a recuperação da Argentina e a retorno aos
mercados de financiamento. "A Argentina já é especialista em calote. As
principais consequências já aconteceram. Só irá acentuar os problemas
que já existem. Mas o default não será surpresa para ninguém", concluiu.
Guerra verbal
Durante o período de negociação, os fundos especulativos pressionaram por diálogo direto e negociação imediata, enquanto o governo de Cristina Kirchner fez uso político do imbróglio, acusando os grupos de tentativa de “pilhagem internacional financeira” e de querer atingir a soberania do país.
Durante o período de negociação, os fundos especulativos pressionaram por diálogo direto e negociação imediata, enquanto o governo de Cristina Kirchner fez uso político do imbróglio, acusando os grupos de tentativa de “pilhagem internacional financeira” e de querer atingir a soberania do país.
Governo argentino criou um site em que diz que fundos abutres querem levar o país ao calote (Foto: Reprodução)
“A Argentina está convencida de que vai honrar suas dívidas com 100%
dos credores, mas de forma justa, equitativa e legal, e conforme as
condições que estabelecem os prospectos de dívida da nação Argentina”,
disse a presidente, em Brasília, durante a sua participação na VI Cúpula
do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul).
“Fundos abutres não negociam, por isso são abutres”, argumentou o Ministério da Economia argentino, que criou até uma página na internet
para defender a posição do governo e na qual afirma que são os fundos
abutres e o juiz Griesa que tentam levar o país ao default.
“O país está disposto a pagar a sua dívida em condições que não afetem a
sua soberania econômica e as bases de seu crescimento econômico e
inclusão social”, disse o ministério, que acusa os fundos de ganância,
uma vez que compraram títulos da dívida não resgatados em valores
baixíssimos e tentam agora obter um "lucro exorbitante", de 1.068%,
segundo o governo.
Do outro lado, o grupo que reúne os fundos especulativos que entraram na Justiça contra o país lançou uma contagem regressiva na internet,
marcando os dias, horas e minutos que restavam para a Argentina
“escolher entre negociar e liquidar as suas dívidas ou escolher o
default”.
Encurralado pela Justiça, o governo argentino passou a travar até uma batalha semântica, rechaçando o termos "calote" e "default".
"Vão ter de inventar um nome novo, não sei qual será", disse Cristina
na semana passada, em referência ao pagamento aos credores que não é
efetivado por conta da disputa judicial com os fundos. "A Argentina não
vai entrar em default por uma razão essencial: porque em default entram
os que não pagam, e a Argentina pagou", acrescentou.
http://g1.globo.com
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