19 de novembro de 2021

O caso Omarova


"Fantasma vermelho". Escolha de Biden para a entidade reguladora da banca ressuscita o macartismo


A escolha do presidente Biden para a liderança do regulador da banca nos Estados Unidos teve um estranho efeito junto dos senadores republicanos que integram o comité do Senado para a banca. Nascida no Cazaquistão em 1966, quando o país fazia parte da União Soviética, Saule Omarova foi confrontada com o passado marxista da sua juventude. Defendeu-se dizendo que não pôde escolher o sítio onde nasceu. Os democratas com assento no comité lamentam este ressuscitar do macartismo.

Saule Omarova será a primeira mulher a assumir a liderança do Comptroller of the Currency (regulador da banca nos Estados Unidos) nos 158 anos de existência deste órgão de controlo da banca que funciona autonomamente dentro do Departamento do Tesouro.

Face à postura hostil e inquisidora do comité, Omarova, cidadã cazaque-americana nascida em 1966 no Cazaquistão (República Socialista Soviética Cazaque), respondeu aos senadores que não teve possibilidade de escolha quanto ao sítio onde nasceu, explicando que os elementos biográficos que a dão como comunista, incluindo a pertença na sua juventude ao grupo denominado Jovens Comunistas (Komsomol), eram uma condição obrigatória para a prossecução da caminhada escolar no país.

“Foi membro dessa organização?”, questionou o senador da Luisiana, John Kennedy, tendo Omarova respondido: “Senador, eu nasci e cresci na União Soviética. Todos eram membros. Fazia parte do percurso normal na escola”.A República Socialista Soviética Cazaque fez parte da União Soviética até 25 de Outubro de 1990, dia em que declarou a soberania no seu território nacional

O senador Kennedy já antes se referira às alegadas simpatias marxistas de Saule Omarova numa linha de interrogatório que poderia remeter para as melhores deixas do Mccartismo, o período da década de 1950 nos Estados Unidos marcado pela perseguição política aos comunistas: “Não quero faltar-lhe ao respeito, mas não sei se a devo tratar por professora ou por camarada”.

Face à insistência sobre a sua pertença actual a algum grupo comunista, Omarova, professora na Universidade de Cornell e ex-consultora no Departamento do Tesouro, esclareceu que não é comunista, comentando os rumores de que seria membro de um grupo socialista no Facebook: “Eu não sou uma comunista. Não subscrevo essa ideologia”.

“Não há qualquer prova de que tenha participado em qualquer tipo de grupos de discussão marxistas ou comunistas”, explicou Omarova, sublinhando o sofrimento que a era da União Soviética infligiu na sua família. Numa entrevista em 2020, contou como foi criada numa família matriarcal pela sua mãe e por uma das suas avós, a qual ficou órfã depois de Estaline ter enviado toda a família para a Sibéria.

O regulador da banca (na designação original – Office of the Comptroller of the Currency) é um órgão independente dentro do Departamento do Tesouro que monitoriza, regula e supervisiona actuação dos bancos e instituições financeiras norte-americanos e também assim de bancos estrangeiros com actividade nos Estados Unidos.

O senador republicano Pat Toomey, munido de uma cópia da tese apresentada por Omarova enquanto estudante de Direito na Universidade de Moscovo sobre Karl Marx (“A Análise Económica de Karl Marx e a Teoria da Revolução em O Capital”), defendeu que as ideias de Omarova “representam um manifesto socialista para os serviços financeiros americanos”.

Face à barragem lançada contra Saule Omarova, o presidente do comité, o senador Sherrod Brown, do Ohio, atacou a postura dos republicanos, que viu como uma lamentável tentativa de “transformar uma mulher qualificada num papão marxista”, acusando-os de fazerem renascer o macartismo: “Agora sabemos o que acontece quando o trumpismo encontra o macartismo. É uma crueldade que ninguém deve experimentar”.


Omarova e a defesa de um novo sistema


A nomeação de Omarova, mais do que estar na origem do renascer da fábula do “papão vermelho”, é apesar de tudo um momento crítico para a Administração Biden e para o próprio presidente, que tem visto a sua popularidade a cair entre os eleitores norte-americanos.

A questão de fundo são as ideias de Omarova para o sistema económico e financeiro dos Estados Unidos, uma reformulação do capitalismo e o fim do sistema bancário tal como os americanos o conhecem. O que, para a ala mais conservadora dos negócios e da finança, seria o mesmo que o fim do capitalismo.

Omarova sofrerá ainda pelo seu apoio a uma Autoridade Nacional de Investimento (NIA no acrónimo original – National Investment Authority), proposta que compara aos programas da era do New Deal e que seria responsável por “conceber, financiar e executar uma estratégia nacional de desenvolvimento económico e de reconstrução a longo prazo”. Uma visão programática de um futuro ambientalmente limpo, justo e equitativo, nas suas palavras. A NIA proposta teria duas componentes: um Banco Nacional para Infraestruturas (National Infrastructure Bank - NIB, na designação original) e um Organismo Nacional de Gestão, virado para as tecnologias verdes.

A questão ganha, contudo, outra proporção, quando se fala da NIA como funcionando à semelhança da Reserva Federal. Acresce aqui a ideia de Omarova de reformar o sistema para “democratizar as finanças”.

De acordo com um relatório do New York Times, Omarova defende regulamentos mais rigorosos sobre as criptomoedas e as empresas de tecnologia financeira (fintech). Face ao cenário do surgimento de uma nova criptomoeda do próprio Facebook, a nomeada de Biden alertou contra “as formas cada vez mais criativas a que as empresas estão a deitar mão para expandir modelos de negócio monopolistas”.

A sua biografia na Wikipedia refere um artigo publicado na Revista Yale (“New Tech v. New Deal: Fintech as a Systemic Phenomenon (2019)”), onde se refere a algumas aplicações de tecnologia financeira como “mecanismos desestabilizadores” da economia.

São estas algumas das características do pensamento de Saule Omarova que fazem levantar os sobrolhos na ala republicana. Greg Abbott, governador do Texas, Estado que tem a indústria petrolífera como um dos sectores de actividade mais poderosos, enviou a Joe Biden uma carta subscrita por seis senadores, pedindo ao presidente que reconsiderasse a nomeação: “Quando Omarova defende a falência da indústria do gás e do petróleo, mostra total desconsideração pelas centenas de milhares de americanos que trabalham nessa indústria”, refere a missiva.

Depois da primeira sessão no comité do Senado, Pat Toomey verberou que “Omarova quer não apenas nacionalizar o sistema bancário, como também que os reguladores do sistema dirijam toda a economia (…) Nunca vi nada igual”.

https://www.rtp.pt


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